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Há uma idade mínima para uma criança ser ouvida em depoimento especial?


22/12/2025

Caro(a) amigo(a) leitor(a), em 2025 estive por aqui na ConJur escrevendo diversos artigos relacionados ao depoimento especial (DE) de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência disciplinado na Lei nº 13.431/2017, analisando assuntos práticos e polêmicos envolvendo esse procedimento de oitiva protegida. Agora, para encerramento do ano, dedicamos o último artigo de 2025 para tratar de um tema muito polêmico e de grande importância prática. Trata-se de uma pergunta que aparece com bastante frequência na prática forense: é possível tomar o depoimento especial de uma criança de 4, 5 ou 6 anos de idade? Em outras palavras: há uma idade mínima legal para a realização desse procedimento? Ou, dito de outro modo: o depoimento especial só pode ser realizado a partir de determinada faixa etária?

A questão não é simples, tampouco meramente teórica. Ela envolve direitos fundamentais da criança e do adolescente, princípios estruturantes do sistema de proteção integral, limites epistêmicos da prova testemunhal infantil, além de riscos concretos de revitimização. Trata-se, portanto, de um debate que exige cuidado, sensibilidade e, sobretudo, rigor jurídico. Sem pretensão de esgotar o tema, adiante daremos nossos pitacos sobre a questão, convidando a todos e todas ao debate.

 

Lei nº 13.431/2017 e silêncio normativo quanto à idade mínima

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro um ponto fundamental: a Lei nº 13.431/2017 não estabelece qualquer idade mínima para a realização do depoimento especial.

O diploma legal define o depoimento especial como procedimento de oitiva protegida de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de atos de violência. Para compreender quem pode ser ouvido por esse procedimento, a lei remete ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Nos termos do artigo 2º do ECA, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Além disso, o artigo 3º, parágrafo único, da Lei nº 13.431/2017 prevê a aplicação facultativa do procedimento às pessoas entre 18 e 21 anos de idade incompletos. São essas as pessoas que podem, de acordo com a literalidade da lei, ser ouvidas em depoimento especial.

 

Ou seja, a lei estabelece parâmetros claros quanto à idade máxima [1], mas silencia completamente quanto à idade mínima. Do ponto de vista estritamente normativo, portanto, basta que a vítima ou testemunha seja juridicamente considerada criança ou adolescente para que, em tese, possa ser ouvida em depoimento especial.

Levado esse raciocínio ao limite, uma pessoa com poucos meses de vida — um recém-nascido, por exemplo — já se enquadra juridicamente no conceito de criança e, assim, em teoria, poderia ser ouvida em DE. Evidentemente, isso não significa que o DE deva ou possa ser realizado nesses casos. Mas o dado normativo é relevante: a lei não fixa uma idade mínima e, a meu ver, nem poderia fazê-lo de forma rígida e abstrata.

 

Depoimento especial como expressão do direito à participação

O depoimento especial não é apenas uma técnica probatória. Ele é, antes de tudo, uma materialização do direito fundamental à participação da criança e do adolescente, consagrado no artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, de 1989.

Esse dispositivo estabelece:

“Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança.”

Há dois elementos centrais nesse enunciado normativo que não podem ser ignorados:
(a) a criança deve ser capaz de formular seus próprios pontos de vista; e
(b) suas opiniões devem ser consideradas em função da idade e da maturidade.

 

Portanto, o direito à participação não se exerce de maneira uniforme, nem automática e tampouco abstrata. Ele é condicionado às competências, habilidades e capacidades comunicacionais concretas da criança. A análise é, portanto, casuística.

Permitam-me uma breve incursão pessoal. Tenho um filho pequeno, Davi, que na data da publicação deste artigo conta com 1 ano e 7 meses. Evidentemente, não se cogita a tomada de seu depoimento especial. Mesmo que, hipoteticamente, ele tivesse sido vítima de alguma violência — o que espero jamais ocorra —, sua comunicação se daria por meio de balbucios, gestos, expressões corporais. Ele se comunica, e se comunica bem, mas não pela linguagem verbal estruturada que o sistema de justiça exige para a formação de um juízo probatório minimamente confiável. Isso demonstra que o problema não é jurídico-conceitual, mas epistemológico e comunicacional.

 

Tentativa de fixação de parâmetros etários por normas locais

Justamente em razão da ausência de previsão legal expressa, diversos tribunais buscaram preencher essa lacuna por meio de regulamentações locais, fixando parâmetros etários mínimos para a realização do depoimento especial.

A título meramente exemplificativo, temos:

Roraima: 3 anos
Resolução nº 47/2019 – TJRR
Art. 7º O Depoimento Especial não será indicado para crianças menores de três anos, pois nessa fase de desenvolvimento, elas ainda não dispõem de condições cognitivas para fazer a descrição da narrativa, visto que codificam muito menos informações.

Rio de Janeiro: 5 anos
Ato Normativo Conjunto nº 35/2019 – TJ-RJ
Art. 4º. O Serviço de Apoio ao Núcleo de Depoimento Especial (SEADE) poderá emitir parecer técnico não vinculante, contraindicando o Depoimento Especial, levando em conta os seguintes critérios:
I – Idade mínima de 5 anos, tendo em vista que a técnica demanda sobretudo maturação da linguagem e desenvolvimento cognitivo do infante;
Parágrafo único: Nos casos em que a criança tiver menos de cinco anos de idade, será avaliado o decurso do tempo entre a data dos fatos e a data do Depoimento Especial, podendo ser contraindicado quando o período for superior a dois anos.

 

Maranhão: 7 anos
Nota Técnica nº 03/2017 do Grupo de Trabalho “Escuta Especial” do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude do Ministério Público do Estado do Maranhão: “o ideal é restringir a possibilidade do ‘depoimento especial’ a crianças maiores de 7 (sete) anos e adolescentes”, conforme citado por Leal; Souza; Sabino (2018).

Protocolo do CNJ para a tomada do depoimento especial nas ações de família em que se discuta alienação parental (minuta inicial): 6 anos
4.5 A realização da oitiva deverá respeitar a idade mínima da criança, sendo aqui indicada aquela que marca o início do ensino fundamental obrigatório, qual seja, 6 (seis) anos de idade; havendo a necessidade de ouvir crianças na primeira infância, o instrumento adequado é o da perícia biopsicossocial ou psicossocial.

A diversidade é evidente: 3 anos, 5 anos, 6 anos, 7 anos. Essa multiplicidade de critérios demonstra, por si só, que não há consenso técnico, científico ou jurídico capaz de sustentar um critério único e absoluto. Uma criança de 4 anos de idade pode ser ouvida em DE? Se for em Roraima, sim; mas, no Rio de Janeiro, não. Afinal, ela pode ser ouvida? Sim, sempre. Não, nunca. A resposta deve ser necessariamente assim, maniqueísta?

 

Primeira conclusão: impossibilidade de critério rígido

A primeira conclusão que me parece inevitável é a seguinte: não é possível fixar um critério etário absoluto e intransponível (presunção absoluta ou juris et de jure) para a realização do depoimento especial.

A participação da criança em audiência judicial não depende exclusivamente da idade cronológica, mas principalmente de suas habilidades cognitivas, comunicacionais e emocionais, que variam intensamente de caso para caso, de sujeito para sujeito.

 

A própria Convenção da ONU é clara ao condicionar o direito à escuta à capacidade da criança de formular seus próprios pontos de vista, bem como à sua idade e maturidade. A idade, portanto, é apenas um dos fatores — e não o único, nem necessariamente o decisivo.

Essa lógica dialoga diretamente com o princípio da autonomia progressiva, oriundo do sistema internacional de direitos humanos, segundo o qual a capacidade de exercício de direitos aumenta gradualmente, à medida que se desenvolvem as competências pessoais do sujeito.

 

O artigo 5º da Convenção da ONU estabelece que pais e responsáveis devem proporcionar orientação à criança “de acordo com sua capacidade em evolução”. O novo Código Civil argentino, de 2014, consagrou expressamente essa lógica ao dispor, em seu artigo 26, que “a pessoa com idade e grau de maturidade suficientes pode praticar por conta própria os atos permitidos pelo ordenamento jurídico” (em tradução livre).

Como bem observa a doutrina especializada:

“É claro que a idade, o contexto e o tipo de manifestação devem ser enquadrados no conceito de autonomia progressiva (…). O que um bebê pode manifestar não é o mesmo que uma criança pode expressar aos 10, 12 ou aos 17 anos; portanto, à medida que o sujeito se desenvolve, ele adquire mais ferramentas para dar a conhecer o seu interesse, o que, por sua vez, gera maior responsabilidade aos adultos em relação à escuta e à decisão subsequente que pode ser tomada.” (Pignata, 2019, p. 241, tradução livre)

A idade é, portanto, um indicador útil, mas genérico e insuficiente da capacidade.

 

Segunda conclusão: a utilidade de parâmetros flexíveis

A segunda conclusão é mais sutil, mas igualmente importante. Embora não seja possível — nem desejável — fixar um critério etário absoluto, é possível e até recomendável a adoção de parâmetros etários mínimos de natureza flexível, como presunções relativas (juris tantum).

 

Esses parâmetros funcionam como regras de prudência institucional, destinadas a evitar oitivas desnecessárias, inócuas ou potencialmente danosas. Pode-se, por exemplo, estabelecer que, preferencialmente, apenas crianças a partir de determinada idade — seis anos, por hipótese — sejam ouvidas em depoimento especial. Essa presunção, contudo, deve poder ser afastada no caso concreto, mediante fundamentação adequada e avaliação técnica.

A nosso ver, o problema não está na recomendação, mas na vedação absoluta.

Mas, o tema é, como dito, demasiadamente complexo e polêmico. Aliás, não por acaso, a versão inicial do protocolo nacional sobre alienação parental [2] previa uma recomendação etária mínima (item 4.5, supratranscrito), que acabou sendo suprimida na versão final [3] após intenso debate público. A polêmica revelou exatamente isso: o risco de transformar uma diretriz técnica em dogma normativo.

 

 

Outros fatores relevantes: tempo, memória e impacto familiar

Para além da idade, outros fatores precisam ser considerados na avaliação técnica e na decisão jurídica acerca da pertinência, conveniência, possibilidade e necessidade de oitiva de uma criança de tenra idade em depoimento especial.

Um deles é o lapso temporal entre os fatos e a oitiva. Sabe-se que a memória episódica de longa duração se desenvolve significativamente a partir dos seis anos. Em crianças muito pequenas, a recordação tende a ser fragmentada, instável e altamente suscetível à contaminação.

Nesse sentido, aliás, a regulamentação dada pelo TJ-RJ, supratranscrita, é bastante completa, pois, a par de estabelecer um critério etário (5 anos) no caput, esclarece no parágrafo único que quando a criança tiver menos de cinco anos de idade, deverá ser analisado o intervalo de tempo entre a ocorrência dos fatos e a realização do DE, sendo possível a sua contraindicação caso esse lapso temporal ultrapasse dois anos. Portanto, dois parâmetros que exigem análise conjunta: idade (5 anos) e tempo decorrido (2 anos).

 

Além disso, o próprio Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) possui um anexo III intitulado Guia Prático de Perguntas Apropriadas ao Nível de Desenvolvimento (págs. 70/71), que demonstra que a capacidade de entendimento das perguntas e evocação da memória varia conforme o tipo de cada questionamento e de acordo com a idade da criança, o que constitui um padrão genérico, mas não rígido. Se não, vejamos:

 

 

 

Outro fator frequentemente subestimado é o impacto sistêmico do depoimento especial na família. Não se pode olvidar que a simples intimação para comparecimento ao fórum já mobiliza todo o entorno familiar. Adultos conversam sobre o caso, tentam “preparar” a criança, muitas vezes de forma inadequada. Isso pode gerar falsas memórias, confusão narrativa e sofrimento psíquico real, principalmente em crianças de pouca idade.

 

Na prática judicial, não é raro que o resultado de um depoimento especial tardio de criança muito nova seja uma narrativa fantasiosa, desorganizada, semelhante a um desenho animado — sem valor probatório, mas com alto custo emocional para a criança. É algo que deve ser ponderado pelo magistrado no momento de decidir pela viabilidade ou não da tomada do DE de criança de tenra idade.

 

Conclusão

Em síntese, acertadamente não há idade mínima legal para o depoimento especial, e não deve haver uma vedação normativa rígida. A solução mais adequada é aquela que combina parâmetros orientativos flexíveis, avaliação técnica especializada e decisão judicial fundamentada no caso concreto. O exame deve ser sempre casuístico.

É perfeitamente legítimo que o juiz, acolhendo parecer técnico, contraindique o depoimento especial de uma criança muito nova, quando ausentes as condições mínimas de participação significativa. Isso não viola o direito à escuta; ao contrário, protege a criança de uma participação meramente formal, inútil ou mesmo potencialmente lesiva.

 

No depoimento especial, mais importante do que perguntar quando ouvir, é saber se e como ouvir. A nosso ver, a resposta a essa pergunta deve advir de uma leitura à luz da proteção integral, da autonomia progressiva e do melhor interesse da criança — e não apenas de critérios etários predeterminados e intransigentes.

 

Fonte: www.conjur.com.br

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