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STJ tem conclusões opostas para dois casos de estupro de vulnerável
Durante a sessão de terça-feira, 14, ao julgar dois delicados casos envolvendo estupro de vulnerável, os ministros da 6ª turma do STJ adotaram conclusões distintas.
No REsp 1.632.242, que tratou da relação entre um homem de 27 anos e uma menina de 13 anos, prevaleceu o entendimento de que o caso configurava erro de tipo, mantendo-se a absolvição.
Já no REsp 2.016.138, em que o acusado, de 25 anos, era tio da vítima, de 11 anos à época dos fatos, a turma formou maioria pela condenação, reafirmando a presunção absoluta de vulnerabilidade.
Os ministros debateram a coerência das decisões e a importância dos julgamentos do STJ diante desses casos. Ministro Rogerio Schietti destacou os posicionamentos divergentes e alertou para os riscos de se relativizar o crime com base em vínculos afetivos formados após o fato.
Primeiro caso - Absolvido
O primeiro julgamento, REsp 1.632.242, tratou de recurso interposto pelo MP/SC que buscava reformar acórdão do TJ/SC que havia absolvido um homem acusado de manter relações sexuais com sua namorada de 13 anos.
Para o Tribunal, a presunção de vulnerabilidade prevista no art. 217-A do CP não é absoluta, devendo ser analisada à luz das circunstâncias concretas, como a maturidade da vítima e a natureza do vínculo entre as partes. Segundo o acórdão, caberia ao intérprete abrandar o rigor do texto legal diante da evolução dos costumes.
O parquet argumentou, em recurso ao STJ, que o dispositivo legal veda absolutamente qualquer relação sexual com menor de 14 anos, sendo irrelevante o consentimento da vítima ou a existência de vínculo afetivo.
Erro de tipo
O relator, ministro Antonio Saldanha Palheiro, destacou que se tratava de uma relação estável e duradoura, com conhecimento e anuência dos pais da vítima, da qual nasceram dois filhos. Assim, uma condenação, e consequente prisão do réu, segundo o ministro, causaria prejuízos à família formada com a vítima.
"Nós ponderamos circunstâncias paralelas, laterais, que trazem uma amenização à conduta criminosa. Efetivamente, ele manteve relações, coabitou com a moça, com o consentimento dos pais, tiveram dois filhos e ficaram juntos por cinco anos. Não sei se ainda estão. Mas, agora, depois desse tempo, as crianças, dependendo dele como mantenedor, vão dizer: 'bom, agora você sai da família e vai cumprir oito anos de reclusão'. Eu não vejo lógica; dos objetivos da pena, de todos que pondero e reanaliso, não consigo entender a lógica desse tipo de punição."
Além disso, Saldanha ressaltou que o caso ilustrava um "clássico erro de tipo", em que o agente não tinha plena consciência da ilicitude da conduta.
Acompanharam o relator os ministros Og Fernandes, Sebastião Reis Júnior e Carlos Brandão, formando maioria pela manutenção da absolvição.
Divergência
Ministro Rogerio Schietti Cruz divergiu, afirmando que decisões como essa afastam indevidamente a súmula 593/STJ, segundo a qual o crime de estupro de vulnerável se consuma independentemente do consentimento da vítima.
"Eu não sei até que ponto iremos admitir que pessoas muito adultas - porque eu acho diferente falar de um rapaz de 18 ou 19 anos, com pequena diferença de idade, que por imaturidade se relaciona sexualmente com uma menina de 12 ou 13 anos -, mas uma pessoa já com 27 anos, passou do momento de se ter algum tipo de complacência com esse tipo de conduta. Eu não vejo possibilidade de se fazer distinguishing e usar argumentos consequencialistas para afastar um crime que existiu."
Processo: REsp 1.632.242
Segundo caso - Condenado
Diante da semelhança entre os casos, ministro Rogerio Schietti Cruz sugeriu que a turma também julgasse o REsp 2.016.138. Trata-se de recurso do MP/RS contra decisão que absolveu um homem de 25 anos acusado de manter relações com sua sobrinha, de 11 anos, com quem teve dois filhos.
O TJ/RS havia considerado que o caso se assemelhava ao processo julgado anteriormente e aplicou o mesmo raciocínio, reconhecendo a relativização da vulnerabilidade diante da relação afetiva e da vida em comum.
O relator, ministro Saldanha, votou novamente pela manutenção da absolvição, sustentando que uma condenação tardia, após anos de convivência familiar, não cumpriria a finalidade da pena.
"Ele é o mantenedor da família, da mulher e dos filhos. [...] Não sei se uma decisão condenatória dessa envergadura traz qualquer sentido de ressocialização ou retribuição."
O ministro contextualizou o caso como reflexo de vulnerabilidade social e educacional.
"Acredito que seja muito fruto da ignorância. Pessoas de baixa renda, de baixa densidade intelectual. E a gente não pode desconhecer que isso, apesar de abominável, é uma prática que ainda existe. Se existe a relação conjugal e o agente se afasta, é outra situação. Agora, com a família constituída anos depois, a gente vai dizer para os filhos: 'seu pai vai ser preso'."
Divergência
Diferentemente do caso anterior, ministro Og Fernandes abriu divergência, por entender que este processo apresentava diferenças relevantes: tratava-se de tio que iniciou relações sexuais com a sobrinha aos 11 anos, havendo relatos de violência doméstica e agressões. Ele manifestou-se pela condenação do réu.
"Aqui é uma situação absolutamente disforme, com a possibilidade, ao meu ver, de uma distinção do processo anterior. Temos aqui uma atitude que eu chamaria de devassa por parte do acusado. A partir do vínculo com a sobrinha, essa relação se tornou doentia."
Os ministros Carlos Brandão e Sebastião Reis Júnior acompanharam a divergência inaugurada por Og.
"As ponderações trazidas pelo voto do ministro Og são muito precisas. Elas contextualizam a absoluta assimetria de poder que havia nessa relação: a diferença de idade, mais de 12 anos, e a relação de tio e sobrinha na mesma residência. Então, eu acompanho o voto divergente", afirmou Brandão.
Neste segundo caso, por maioria, a 6ª turma deu provimento ao recurso do MP/RS, acompanhando a divergência aberta por Og Fernandes, que foi designado redator do acórdão.
Processo: REsp 2.016.138
Entendimentos conflitantes
Ministro Rogerio Schietti Cruz seguiu seu entendimento pela condenação, mas aproveitou o julgamento para questionar a coerência entre os dois casos e criticar a relativização da vulnerabilidade da vítima.
"O que distingue aqui é simplesmente o parentesco, mas, objetivamente, o fato é o mesmo. Estamos permitindo que um adulto seduza uma menina de 12 anos e, por um fato posterior, estamos apagando o crime."
Para Schietti, decisões como essa resultam em uma dupla punição da vítima, "porque ela já teve a sua adolescência afetada- neste caso concreto, inclusive engravidou. Há informações de que abandonou os estudos, como geralmente acontece nesses casos. E sempre a ideia de que quem seduz uma menina de 12 anos 'tinha a melhor das intenções, queria se casar, uma relação de amor'. Estamos presumindo isso. Mas o que temos é um fato objetivo: houve um crime".
Além disso, criticou a impunidade em situações dessa natureza:
"Imagine um adulto de 27 anos mantendo relações com uma menina de 12. Isso nós estamos aceitando como algo que não vai ensejar nenhum tipo de punição. Se ele constituiu família - não sei que família é essa -, está vivendo com a vítima, nós não punimos. Se se separou, nós punimos. Aqui é mais grave, claro, porque há uma relação de parentesco, mas o fato é o mesmo: um adulto bem experiente, com mais do dobro da idade da menina, praticando um crime contra a dignidade sexual, um dos mais graves do CP."
Schietti citou ainda matéria jornalística da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que, em maio de 2025, expressou preocupação com decisões do STJ que isentam de responsabilidade penal atos de violência sexual contra meninas e adolescentes,"contrariando toda uma tendência mundial de combater com energia esse tipo de comportamento".
Consequências da pena
Diante das ponderações de Schietti, o ministro Antonio Saldanha Palheiro reiterou seu ponto de vista e buscou esclarecer o raciocínio adotado em seus votos:
"O fato de ele ter se separado posteriormente não o isenta da obrigação alimentar. O receio de que a vítima seria punida mais uma vez, com a ausência de punição do acusado, também se inverte quando ela deixar de ter de onde tirar o sustento dos filhos."
O relator reafirmou a existência de erro de tipo, a falta de conhecimento da população sobre a criminalização dessas condutas e os efeitos de condenações tardias.
"As pessoas, efetivamente, não sei se têm conhecimento de que é um crime com essa capitulação tão rigorosa, se a vítima tem 13 ou já tem 14 anos. É um ato abominável, não tenho dúvida. Mas fico pensando nas consequências dessa pena. E também temos de considerar a demora na tramitação do processo. Seis, sete, oito anos depois, as crianças já saíram da primeira infância e aí o pai vai ser preso."
Fonte: www.migalhas.com.br